Cristiano van Zeller, pioneiro no vinho de mesa do Douro

Cristiano van Zeller, pioneiro no vinho de mesa do Douro

21 Outubro 2020

 

 

“Que desperdício de boas uvas!” Cristiano van Zeller refere-se assim às longas décadas da história da produção de vinho do Douro durante as quais o Vinho do Porto foi rei e a produção de vinhos de mesa de qualidade quase inconcebível. Van Zeller é um gigante na história do nascimento e ascensão aos vinhos DOC do Douro, a par do vinho tradicional da região, o Porto. Encontramo-nos no jardim da casa de van Zeller, a uma curta distância do centro do Porto. A temperatura nesta tarde de meados de Julho é de 38º C.

Van Zeller acaba de falar com um membro da equipa de viticultura da Quinta do Vale Dona Maria, a adega que dirige no Vale da Torto, na margem sul do rio Douro, no Cima Corgo. Faltam poucas semanas para a vindima, sente-se mais seguro que as uvas estão a ganhar cor e a amadurecer bem, com bons níveis de açúcar. Van Zeller é também responsável pela divisão de vinhos finos da Aveleda, o maior produtor nacional de Vinho Verde, propriedade dos seus primos, a família Guedes.

Cristiano van Zeller é expansivo e cortês, com uma sensação suave de humor e com interesse histórico. O primeiro van Zeller, Arnold, chegou ao Porto de Rotterdam na década de 1720. A família tornou-se negociante de Vinho do Porto e desenvolveu os seus primeiros mercados de exportação, da Inglaterra para a Rússia. Um dos seus antepassados foi nomeado cônsul russo no Porto pela Czarina Catarina, a Grande.

Van Zeller, agora com sessenta e poucos anos, também pode ser considerado uma figura histórica. Na década de 1980, os van Zellers eram proprietários da Quinta do Noval no Vale do Pinhão (a Quinta foi vendida à Axa Millesimes em 1993). Em 1985, quatro anos depois de começar a trabalhar na Noval, van Zeller iniciou suas primeiras experiências na produção de vinho de mesa. Ao mesmo tempo, outros pioneiros conduziam as suas próprias experiências enológicas em adegas noutros pontos do Douro: Dirk Niepoort e o enólogo australiano David Baverstock na Symington Family Estates, foram duas figuras com influência duradoura.

“Éramos a geração mais preparada de sempre, com os primeiros enólogos a saírem da universidade de Vila Real”, lembra van Zeller. Para fazer Vinho do Porto, são necessárias uvas ligeiramente maduras, com altas concentrações de açúcar. Para fazer bons vinhos de mesa, é necessário que a colheita seja mais cedo, no momento certo, para conseguir frescura e acidez equilibrada. Por que não colher as uvas para fazer vinhos de mesa antes de colher as uvas para a produção de Vinho do Porto? “Nós apenas tivemos que mudar o pensamento para conseguirmos fazer dois grandes vinhos.”

Van Zeller e os seus colegas sentiram-se desafiados por uma ‘obrigação’ de pensar de forma renovada, perante a necessidade de substituir um modelo de negócio insustentável baseado no cultivo de uvas para venda a um número cada vez menor de empresas de vinho do Porto, com um futuro incerto. A ‘revolução’ do Douro DOC estava em marcha. Depois da Quinta do Noval, van Zeller foi convidado por Jorge Roquette para trabalhar na Quinta do Crasto no desenvolvimento de uma gama de vinhos de mesa que se tornariam nos melhores do Douro, ganhando fama internacional.

“Foi uma verdadeira aventura”, comenta van Zeller. Porém, poucos vinhos portugueses tinham alcançado o reconhecimento internacional que hoje têm. A questão era “como seria possível a afirmação no mundo com um vinho diferente? Precisávamos de uma massa crítica de produtores de boa qualidade para sermos visíveis no mercado. ” Van Zeller tornou-se membro fundador dos Douro Boys, grupo de produtores de vinho que se uniram em 2001 para promover os bons vinhos da sua região no palco internacional do vinho. Quase vinte anos depois, van Zeller ainda faz parte deste grupo ativo que tem desempenhado um papel fundamental na geração de interesse pelos vinhos secos do Douro.

“O Douro é um terroir como o da Borgonha, no sentido de que cada pequena parcela é muito diferente das outras”, explica van Zeller. Na Quinta do Vale Dona Maria as vinhas têm frequentemente mais de cinquenta anos, e a propriedade tem exposições solares variadas e altitudes que vão até cerca de quinhentos metros. Dando uma ideia do porquê dos seus vinhos serem tão conceituados, van Zeller acredita que embora os avanços da ciência e da enologia tenham permitido melhorias significativas na vinificação portuguesa, o conhecimento empírico, transmitido de geração em geração, muitas vezes dentro da mesma família, é igualmente importante para a afirmação da enologia portuguesa. “Gosto de ser surpreendido todos os anos. Não gosto que as coisas sejam muito quadradas ou científicas para saber o que vai acontecer. O vinho significa ser animado e desafiado. Eu amo esta incerteza.

O blend de castas é outra da característica da Quinta do Vale Dona Maria. “Penso que a mistura é fundamental para a produção dos nossos vinhos do Douro.” Um lote é uma parcela de vinha onde a tradição é plantar muitas castas diferentes ao acaso, permitindo que a mistura aconteça literalmente na vinha, com a apanha de todas as castas a ocorrer simultaneamente. O que há de mais natural na região do Porto, rei dos vinhos? “Sabemos que, ao fazer a mistura na cuba de fermentação, iremos conseguir elaborar um vinho melhor do que fermentando variedades separadas e misturando posteriormente.”

A nossa conversa volta inevitavelmente ao Vinho do Porto. “O Vinho do Porto é muito fácil de fazer! Mas dá muito mais trabalho na viticultura. As uvas são o componente mais importante. Colocamos 90% do nosso esforço na viticultura. ” Quando afirmo que o Vinho do Porto pode parecer intimidante com a sua multiplicidade de categorias diferentes, ele responde que a Van Zellers & Co, a sua marca de Vinho do Porto familiar, surgiu com uma solução de branding original, dividindo todas estas categorias em três mais simples: Crafted pela natureza, Crafted à mão e Crafted pelo tempo.

Discutimos o trabalho do Master Blender, “o homem mais importante numa empresa de Vinho do Porto. É preciso uma pessoa com uma memória maravilhosa. O essencial que uma empresa de Vinho do Porto deve transmitir ao longo das gerações é essa memória. O cheiro é uma memória que você guarda toda a vida. ” Sugiro que seja possível fazer uma comparação entre o trabalho do ‘nariz’ numa casa de perfumes e o do Master Blender numa empresa de Vinho do Porto. “É uma comparação fantástica!” Responde. “É preciso uma mistura de paixão e dom inerente, como um grande músico.” Menciono que existem várias gerações de ‘nariz’ dentro da mesma família na Guerlain e igualmente várias gerações de Master Blenders na mesma família em Hennessy, e ele aponta que na Niepoort o Master Blender é a quarta geração de sua família.

O sol teve misericórdia de nós e escondeu-se atrás do muro do jardim. Van Zeller, referindo-se ao facto de durante muitos anos ter trabalhado principalmente com enólogos mulheres, acrescenta “penso que ser mulher ajuda. Eles têm mais habilidade nessa área, e também são mais naturais, mais diretas ”. Cita Sandra Tavares da Silva, que trabalhou com ele na Quinta do Vale Dona Maria, como uma mulher no auge absoluto da arte da vinificação. Portugal tem hoje várias enólogas notáveis, mas ainda há espaço para mais…

Provámos um Curriculum Vitae 2016 branco. Um lote de muitas castas diferentes, feito a partir de vinhas velhas plantadas a quatrocentos e cinquenta metros de altitude, sendo depois as uvas suavemente esmagadas, antes da fermentação e envelhecimento em carvalho. Produzido em pequenas quantidades e vendido em pequenas quantidades, este vinho é vínico e complexo e envelhece bem em garrafa.

 

The author, James Mayor, is the founder of Grape Discoveries, a boutique wine tourism business: www.grapediscoveries.com

 

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